“É muito difícil estar em uma universidade. O mais difícil é estar entre praticamente 18 mil estudantes e ser a única pessoa trans. É um percurso muito solitário”.
A história do soteropolitano Bruno Silva de Santana é uma exceção, com relação a uma parcela da população brasileira, a transgênero. O termo é utilizado para designar pessoas que não se identificam com o gênero biológico que nasceram, como ele.
Dados levantados pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais, a Antra, apontam que apenas 2% da população trans está nas universidades. Uma dessas pessoas era Bruno, que se formou em Educação Física na Universidade de Feira de Santana (Uefs), a cerca de 100 km de Salvador, neste semestre.
“Muitas pessoas trans e travestis tiveram que morrer para que eu pudesse chegar até aqui. Quando uma pessoa trans ocupa qualquer espaço na sociedade, ela leva consigo toda uma história de luta e resistência, que servirá de incentivo para todas as outras que virão. Isso é motivo de muito orgulho. Essa conquista é coletiva e envolve muitas redes de afeto e acolhimento” disse ele.
Segundo o educador físico, a primeira barreira que ele encontrou foi poder usar o nome social. Bruno entrou na universidade no segundo período de 2013. O direito do uso do nome só foi aprovado em 2015.
Minha primeira luta foi para que eu pudesse ter o meu nome reconhecido, porque a primeira coisa que a gente tem, que legitima nossa existência, é o nome
“A UEFS ainda não fazia uso do nome social, e eu fui a primeira pessoa a reivindicar esse direito. Eu tive que travar essa luta, junto com outras pessoas da universidade, militantes, pessoas LGBT’s que eram minhas amigas e amigos, e tive a sorte de contar com alguns professores que me acolheram nesse processo”, conta ele.
Bruno Santana foi a primeira pessoa a pedir o uso do nome social na UEFS — Foto: Arquivo pessoal
Antes de ter o direito ao nome social concedido na universidade, Bruno passou por diversos constrangimentos, como lembrar aos professores de sua existência enquanto pessoa.
“Todo semestre tinha que enviar e-mails falando que era uma pessoa trans e que gostaria de usar meu nome social, que gostaria que eles me chamassem pelo nome que me representava. E aí, a maioria dos professores tinham dificuldades de compreender. Muitos fingiam que estavam respeitando, mas eu era exposto a todo momento nas aulas. Tinham professores que na minha frente respeitava, mas por trás, com outros colegas e às vezes com outros professores, eles diziam que iam sempre me tratar pelo gênero que eu nasci, que eu nunca ia ser homem”, lembra ele.
Para Bruno, os danos causados por professores que negavam sua identidade é uma falha na formação deles.
“Essas são algumas barreiras que a gente encontra, que mostram a lacuna na formação desses professores. Eles não são preparados e não têm disciplinas que os ensine a lidar com as diversidades de gênero, com as identidades de gênero, e tantas outras pluralidades dentro da perspectiva de gênero e sexualidade”, avalia Bruno.
Essas são as primeiras barreiras que a gente enfrenta. Ser apontado. Ser deslegitimado a todo instante. A desinformação dentro da universidade
Outra dificuldade que ele encontrou foi transitar nos banheiros da universidade. Para conseguir ter acesso ao espaço, Bruno conta que precisou criar estratégias. Entre não se sentir confortável no banheiro feminino e o medo de ser violentado no masculino, ele já teve que ficar o dia inteiro sem fazer xixi.
“Eu passava o dia todo na universidade. Muitas vezes eu fiquei o dia inteiro sem urinar. Eu ficava ali aguentando porque eu não conseguia entrar no banheiro feminino, não me sentia confortável por não me identificar com o gênero feminino. Também não entrava no [banheiro] masculino porque naquele momento, no meu processo inicial de transição, eu não tinha uma leitura social masculina, o que fazia com que as pessoas não me respeitassem como homem”, lembra.
Eu tinha medo de ser estuprado. Eu tenho amigos trans que foram estuprados em banheiros. A gente tem narrativas de diversos estupros chamados ‘corretivos’. Eu tinha muito medo
Para ele, a ausência de pessoas transgêneros dos sistemas educacionais se deve ao fato das instituições só consideram a perspectiva cisgênera, ou seja, de indivíduos que se identificam com o seu gênero que nasceram.
“Não é pensado o corpo trans dentro desses processos. Isso contribui para a evasão. Para que pessoas trans e travestis não consigam concluir o Ensino Médio. Para que elas não consigam, inclusive, permanecer na Educação Básica”, diz.
Acolhimento
Bruno Santana foi acolhido pelos colegas de turma, enquanto eram discriminado na universidade — Foto: Arquivo pessoal
Por outro lado, ele conta que encontrou acolhimento com os colegas de turma, que acompanharam sua transição e o respeitaram. O respeito virou admiração, que se transformou em um convite para ser o orador da turma, na formatura.
“A partir do momento em que eu falei que era um homem trans, que meu nome era Bruno, as pessoas tentaram me acolher da melhor forma possível. Eu construí uma relação muito linda com meus colegas de curso. Não é à toa que eu fui escolhido o orador da turma.
O fato de ter feito a transição enquanto já estava na universidade também é considerado por ele um fator facilitador do tempo em que esteve no ambiente educacional.
“Com certeza, se eu tivesse transicionado antes de entrar na universidade, era bem provável que eu não conseguisse entrar. Primeiro, pelo próprio processo de acesso à universidade, que é a prova de vestibular, que não tem nome social. Isso acaba excluindo pessoas trans e travestis, que almejam entrar em um processo seletivo desse”, pondera.
Depois que eu transicionei dentro da universidade, para mim foi mais fácil porque eu já estava lá. A luta foi para que eu conseguisse permanecer lá dentro.
Enquanto estava no processo de transição e notando as alterações no próprio corpo, Bruno percebeu também que as mudanças físicas facilitaram a aceitação por parte de outras pessoas.
“Durante o processo de transição, eu percebi o meu corpo mudando, com barba, com características que faziam com que eu tivesse uma leitura masculina social, fazendo com que as pessoas olhassem para mim e me lessem como homem. Quanto mais essas coisas foram acontecendo e esses processos foram avançando, as pessoas da universidade começaram a se adaptar, a se acostumar com a minha figura transitando ali dentro”.
Identidade
Formatura de Bruno Santana, onde ele foi orador da turma — Foto: Arquivo pessoal
Hoje, a principal luta da população transgênero no Brasil é reverter a condição de patologia – doença – à identidade sexual. A homossexualidade, por exemplo, não é considerada doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 1990. No entanto, a população transgênero e travesti continua enquadrada pelo Código Internacional de Doenças.
“A nossa luta, enquanto movimento de pessoas trans é pela despatologização das nossas identidades, para que a gente possa ter uma vida normal, que a gente consiga transitar, que a gente consiga existir na sociedade sem ser violentado, sem ser exterminado, como tem acontecido com a gente, por conta desse conservadorismo e dessa transfobia, não só institucional, mas social”.
Queremos ter nossa humanidade reconhecida. Concluir essa graduação significa abrir portas e janelas para que outras de nós passem a ocupar o que é nosso por direito.
Bruno já possui documentos de identidades com o nome que ele escolheu, depois que completou a transição de gênero. “Eu ratifiquei nome e gênero já tem três anos, quase quatro. A minha vontade de fazer esse enfrentamento foi para deixar esse legado, para que outras pessoas trans pudessem usufruir”, considera.
O processo de mudança foi registrado na monografia de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) dele.
“Eu relatei na minha monografia e fiz uma autobiografia falando da minha trajetória enquanto homem trans em um curso de Educação Física. E como aquela galera toda, aquela rede de professores e alunos passaram a me ver como o homem que eu sou”.
Fonte: G1