ais de 1.600 crianças estão fora da escola por falta de vagas na rede municipal de ensino do Recife. Os dados são do Conselho Tutelar do município e se referem ao período de janeiro a junho de 2018. Durante o ano passado inteiro, foram registrados 1.195 casos. Em paralelo, há pelo menos oito obras de escolas e creches paradas ou atrasadas.
Os dados apontam o número de crianças que não conseguiram vagas na rede municipal e, então, recorreram à entidade, mas a Prefeitura do Recife, até o momento, não encontrou uma solução e elas permanecem sem estudar. Esse número pode ser ainda maior, uma vez que nem todas as mães denunciam a situação em casos semelhantes.
De acordo com os artigos 53 e 54 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é dever do estado propiciar educação obrigatória e gratuita a crianças e adolescentes.
Segundo o conselheiro Municipal de Educação Neto Ferraz, só este ano, até junho, o Conselho Tutelar recebeu cerca de 2.500 solicitações de vagas para crianças na rede de ensino do município. Dessas, foram atendidas apenas 900, cerca de 36% dos casos.
“No segundo semestre sempre chega mais casos como esses. E à medida em que vai aumentando, a prefeitura não vai tendo mais vagas disponíveis em várias localidades. Nesse caso, quem deveria garantir o direito da criança à educação é justamente quem viola esse direito. O estudo é a garantia do futuro dela”, afirma Neto Ferraz.
Segundo ele, muitos desses casos estão marcados na prefeitura como resolvidos, quando na verdade a criança ainda continua sem frequentar a escola. Isso acontece porque algumas vagas indicadas para a criança pela gestão municipal são para escolas ou creches muito longe das casas das famílias, algumas vezes em até 10 quilômetros de distância, e a família não aceita a vaga.
“A prefeitura oferece a vaga e marca como se a criança estivesse estudando, mas ela não está. A maioria desses casos é na periferia e nem todas as famílias têm condições de pagar passagens de ônibus diariamente. Se a prefeitura desse condições para que essas mães chegassem lá, tudo bem. Mas eles não disponibilizam transporte. Tem que garantir a vaga e o direito de a criança estudar também”, diz.
E foi assim que aconteceu com Elisângela Pereira, de 42 anos. Desde novembro de 2017, quando se mudou para a sonhada casa própria, no Conjunto Habitacional Governador Miguel Arraes, no bairro de Passarinho, na Zona Norte do Recife, a dona de casa enfrenta o pesadelo de não conseguir educar o filho.
No bairro não há creches municipais e, depois da tentativa de achar uma vaga em uma creche nos arredores para o filho Nicholas, de 4 anos, ela recorreu ao Conselho Tutelar, que fez a solicitação à prefeitura do Recife.
A mãe conta que, algum tempo depois, a Secretaria de Educação disponibilizou uma vaga para a criança. No entanto, a creche ficava no bairro da Caxangá, a mais de 10 quilômetros de distância da casa deles.
“Eu não trabalho fora porque não tenho com quem deixar o meu filho. Aí se fosse para levar ele para lá todos os dias, eu teria que gastar muito com passagem, e eu não tenho esse dinheiro. O ideal era que fosse algo perto de casa. Eu também não tenho condições de colocar ele em uma escola particular, infelizmente”, lamenta.
Enquanto espera uma solução viável oferecida pela prefeitura do município, Elisângela convive com as incertezas sobre a educação e o futuro do filho.
“Ele está sem estudar desde que viemos morar aqui. Já vai começar na escola atrasado. A educação do meu filho é a dignidade dele no futuro. Toda mãe fica preocupada, não é? Aqui no bairro a marginalidade impera, as crianças ficam vulneráveis. E fora da escola, então, é muito pior”, diz Elisângela.
Mesmo sem entender direito o que está acontecendo, o pequeno Nicholas também sofre com a falta de uma etapa importante no desenvolvimento de toda criança. “Às vezes os amiguinhos estão aqui brincando com ele, e quando dá certa hora eles vão se arrumar para ir para a aula. E meu filho chora porque vê outras crianças indo para a escola e ele fica em casa”, conta a mãe.
No mesmo bairro, outra mãe passa por situação semelhante. Depois de dois anos tentando conseguir matricular as filhas Kelly e Jenifer, de 8 e 9 anos, respectivamente, em uma escola municipal perto de casa, a dona de casa Eduarda dos Santos, de 27 anos, perdeu o direito ao Bolsa Família, pois não tinha como comprovar que as meninas estudavam, fator que é obrigatório para receber o benefício.
Sem conseguir dar educação às filhas e com menos renda para sustentá-las, a dona de casa teve que tomar uma decisão difícil. Ela mandou as filhas irem morar com o pai, de quem é divorciada, em Jaboatão dos Guararapes, na tentativa de proporcionar uma vida melhor para as meninas.
“Eu fui cortada do benefício porque não tinha comprovado que minhas filhas estavam estudando. Mas eu tentei muito colocar elas na escola e não abriram vagas. Aqui no bairro foram sete vagas para 300 crianças”, conta a mãe. “Eu fico preocupada com o futuro delas, e por isso foram morar com o pai, porque aqui não tinha condições de estudar”, afirma.
Para os filhos mais novos de Eduarda, frutos do atual casamento, não há outra opção senão esperar que abram vagas nas creches dos bairros vizinhos, já que não há nenhuma creche municipal no bairro de Passarinho.
Eduarda conta que, há alguns meses, a Secretaria de Educação disponibilizou uma vaga para o menino de 3 anos em uma creche do Alto José Bonifácio, cerca de cinco quilômetros da casa da família. Mas com um filho recém-nascido e sem dinheiro para pagar passagens de ônibus, a distância impossibiliou a mãe de aceitar a vaga.
“A gente não tem nem o que comer direito, quanto mais dinheiro para pagar passagem até a creche todos os dias”, afirma Eduarda.
Enquanto espera, Eduarda fica sem previsão de mudança. “Eles pegaram os dados das crianças que estão sem estudar e das mães, mas não fizeram mais nada. A gente fica sem informação, não sabe de nada”, desabafa.
Bairro do Passarinho
A situação das famílias do bairro de Passarinho é antiga. Há dois anos a comunidade luta pela construção de uma nova escola no local. Atualmente, só no bairro, são cerca de 100 crianças que estão fora das escolas por falta de vagas, segundo o Conselho Tutelar do município.
Em março deste ano, moradores da comunidade fizeram um protesto, intitulado ‘Escola na Praça’, para chamar a atenção da população e das autoridades sobre a situação das crianças do local. Na época, eram contabilizados 87 crianças nesta situação.
A única escola que atende alunos do ensino fundamental no bairro é a Escola Municipal Marluce Santiago, que abriu apenas 18 vagas este ano, de acordo com a líder comunitária e presidente do Grupo Espaço Mulher, Edicléa Santos. Além disso, não há nenhuma creche municipal no bairro.
Edicléa conta, ainda, que a comunidade já tentou negociar com a prefeitura, mas até o momento nada foi feito. “Tivemos reunião com a Secretaria de Educação e uma audiência no Ministério Público. Ficou decidido que íamos achar um imóvel para ser a nova escola. Depois disso, a população encontrou algumas casas para alugar e fazer uma escola com nove salas de aula. A prefeitura disse que queria uma das casas, mas aí demorou, o dono desistiu de alugar e nada foi feito”, afirma.
A situação no bairro se agravou depois que o Conjunto Residencial Governador Miguel Arraes começou a ser entregue à população, em 2016. Segundo a Secretaria de Infraestrutura e Habitação do Recife, 223 famílias já receberam moradias no local.
Apesar do crescimento populacional do bairro, não houve construção de nenhuma nova escola ou creche no bairro e, segundo os moradores, a disponibilidade de vagas na escola já existente permaneceu a mesma.
Segundo o conselheiro tutelar do bairro, Vado Cruz, o Conselho Tutelar da RPA 3 entrou com um processo na Promotoria de Educação do Ministério Público, em 2016, para que fosse criada uma nova escola na comunidade.
A entidade também pediu que a prefeitura garantisse a frequência desses alunos em escolas particulares do bairro até a nova unidade pública ser implantada. A prefeitura do Recife, no entanto, recorreu e ainda não há decisão definitiva.
Obras abandonadas
Enquanto muitas crianças não conseguem estudar por falta de vagas, o Recife tem várias obras de escolas e creches municipais paradas ou atrasadas. Segundo um levantamento feito pelo G1, pelo menos oito unidades de ensino estão na situação.
“As obras paradas são piores do que se não tivessem começado a construir. É gasto muito mais nesses casos. Porque a obra se degrada e vai ter que ser reavaliada e restaurada, antes de terminar o que falta. São dois gastos”, afirma o conselheiro tutelar Rafael Reis, da RPA 3B, onde há pelo menos três obras de escolas paradas.
Uma das unidades de ensino com obras paradas no Recife fica na 1ª Travessa Siriji, no Alto do Mandú. O prédio era da antiga Escola Estadual França Pereira, que ganhou nova sede ao lado, e o espaço antigo foi cedido ao município para a implantação de uma creche.
Segundo os moradores do local, isso aconteceu há cerca de 10 anos. Mas, até o momento, o prédio permanece abandonado.
Dentro da unidade é possível perceber que foram feitos pequenas intervenções na estrutura, como reparos em partes do reboco e troca de janelas.
No entanto, o abandono é perceptível na quantidade de mato e lixo acumulados e na água parada encontrada no interior do prédio. Há também equipamentos quebrados, como a cesta de basquete da quadra.
A estrutura conta com pelo menos oito salas de aula, banheiros, área administrativa, quadra aberta, e pequenas áreas verdes. A equipe do G1 esteve no prédio e constatou que não há obra em curso. Apenas um porteiro trabalha no local.
Na comunidade do Córrego do Euclides, na Zona Norte do Recife, a dificuldade é outra. A obra de uma escola municipal na Rua Tibiriçá, ao lado do número 40, deveria ter sido concluída há cerca de cinco anos, mas ainda não acabou.
O prédio, que inicialmente era um anexo da Escola Municipal Córrego do Euclides, teve as obras iniciadas em 2013 e, de acordo com as informações da placa da obra, tinha o prazo de conclusão estipulado para 180 dias, mas ainda não foi entregue à população.
Segundo moradores da comunidade, a obra parou e foi retomada várias vezes ao longo desses cinco anos, por diversos motivos, incluindo falta de pagamento dos funcionários.
Enquanto não é concluída, muitas famílias precisam se descolar a outras localidades, como é o caso da manicure Nataly Pereira, de 31 anos, que mora na rua da escola em obra, mas precisa andar cerca de 15 minutos para levar a filha de 5 anos até uma escola no bairro do Morro da Conceição.
“Essa obra parou muitas vezes e nunca fica pronta. As outras escolas são todas longe. Ter uma aqui na comunidade era muito melhor para nós”, afirma a