Calmaria: esse é um dos significados da expressão inglesa Lull, nome do ateliê de aula de costuras que fica no boêmio – e contrastante – bairro do Rio Vermelho, em Salvador. Apenas cinco minutos no ambiente são necessários, para perceber o porquê da escolha.
O espaço reúne cerca de 140 alunos, entre mulheres e homens, divididos em várias turmas. Lá, além de aprender a costurar, eles estimulam a ideia do consumo consciente. De quebra, os aprendizes trocam afeto e escuta.
O consumo consciente é uma das filosofias do tatuador Aurélio. Aluno do Lull há seis meses, ele aprende a costurar para fazer as próprias roupas, como uma forma de minimizar os impactos negativos dos hábitos de consumo.
“Eu sempre tive vontade de aprender a costurar, sempre gostei de vestir camisa social. Então, cresceu a vontade de fazer, porque para mim é muito difícil encontrar em loja camisas do jeito que eu gosto, com a estampa certa ou com o tamanho certo”, conta ele.
De repente eu achei um panfleto e pensei: ‘vou largar as coisas e vou fazer isso aí. Tirar um dia na semana para aprender a costurar’
O desejo de ter as próprias roupas personalizadas também foi o que levou a professora de história, Andressa Santalucia, a aprender e renovar a arte da costura.
“Eu gosto de roupas muito diferentes das que normalmente tem por aí. Então, eu sempre quis fazer as minhas. Eu até fazia, mas com cola quente. Comecei a trabalhar em um restaurante que a dona é formada em moda. Ela sempre elogiava minhas roupas. Eu falei para ela um dia que queria fazer um curso de costura e ela me indicou aqui o ateliê para que eu viesse conhecer. Eu vim e me apaixonei”, disse.
Andressa, que está no curso há três meses, ainda não começou a fazer as próprias roupas. No entanto, ela está na construção de uma peça especial.
“A primeira peça que eu estou fazendo é para uma amiga, não fiz nenhuma outra peça de roupa. Nós temos um projeto de criar um negócio juntas. Ela é artista plástica e vai fazer as estampas, e eu a parte da costura. Então essa primeira peça é para ver se dá certo, e aí eu quero começar a fazer coisas bem diferentes”, revela.
Assim como Andressa, Aurélio também não começou a costurar para si próprio. As “encomendas” dele, por enquanto, são para a companheira.
“Ela fica falando com as amigas: ‘olha, ele que fez essa saia’. Ou então quando ela compra uma roupa e diz: ‘você vai fazer essa aqui e vai melhorar essa parte aqui, que não tá boa. Vai fazer do jeito certo para mim’. Já tenho as encomendas dentro de casa. Ela fica fuçando coisa para fazer”, conta ele aos risos.
Os dois representam os tipos diferentes de alunos do Lull. Enquanto os planos de Andressa são investir em um novo negócio, Aurélio encara a costura como um hobby. Entretanto, os dois encontraram no ateliê um diferencial que renova a tradição da costura: o afeto.
“A gente convive com gente de toda idade e vai pegando amizade. O pessoal é bem carinhoso. A maioria das colegas é mulher e elas ensinam, passam receita, têm um cuidado. Um se preocupa com o outro no momento da costura, pergunta da vida, comenta. Tem dias que um traz um biscoito. Aqui, as professoras têm esse carinho, de tratar todo mundo de igual para igual, avalia o tatuador.
A interação é bem naturalmente, como se fosse uma família mesmo, uma roda de amigos
No caso de Andressa, pouco antes de começar a aprender a costurar, ela havia se separado. O apoio encontrado após sair de um momento difícil da vida foi fundamental.
“Elas me deram o suporte da segunda de manhã, que é quando eu espero para poder chegar, relaxar, dar risada, descobri outras coisas. Tem pessoa de todas as idades, então isso faz toda a diferença. Aqui a gente tem aula, tem atenção, a gente dá risada, brinca, conversa, a gente se ajuda”, pontua ela.
É muito além do que passar um tecido em uma máquina, é muito mais especial
Ateliê
O Lull foi criado pela designer de moda Sara Costa. Desde pequena, ela desenvolveu o amor pela costura ao ver as produções da mãe e o carinho que a avó tinha com a máquina.
“Minha mãe costurava por diversão. Quando eu era criança, ela fazia vestidinho pra mim, shortinho pro meu irmão, essas coisas. Aí eu fui me habituando com a máquina em casa, vendo ela costurar e em um dado momento resolvi brincar. Pedi, ela autorizou e eu comecei a fazer roupinha de boneca e tal, eu tinha uns 8 anos”, conta
Essa foi a oportunidade que Sara precisava para aprimorar seu interesse em construir coisas: “A gente tinha uma vizinha costureira, que era mãe de uma amiguinha minha da escola. Às vezes eu ia pra casa dela, não pra brincar, mas pra ver a mãe dela costurar. Eu pegava os retalhinhos, levava pra casa, fazia as roupinhas e tal”
Pra mim era bem gostoso e era muito lindo de ver o tecido virar roupa. Um tecido sem forma, ter a forma do corpo. Eu achava maravilhoso
Já na adolescência, Sara aperfeiçoou o que sabia com cursos de estilista, corte, molde, desenho de moda e design têxtil. “De 15 anos, as meninas ganham viagem pra Disney, eu ganhei uma máquina. A costura era minha Disney”, relembra ela aos risos.
Sara é natural da cidade de Florianópolis (SC) e veio para Salvador para começar a faculdade de moda, em 2009. Enquanto estava no curso, recebia muitos incentivos para empreender e resolveu criar uma marca de bolsas, em 2010.
“Não era uma coisa séria, era mais como uma diversão. A marca tinha o mesmo nome do ateliê. E um dado momento, descobri que as pessoas tinham mais interesse em aprender a fazer as bolsas, do que em comprá-las prontas. Aí eu vi uma oportunidade e abri o ateliê para também ensinar”, recorda.
A ideia inicial era fazer as bolsas, vender e dar as aulas. Só que, para a surpresa de Sara, a procura pelo curso foi muito maior do que a procura pelo produto pronto. Em 2013, a perspectiva de negócio dela mudou.
“Descartei a ideia de continuar produzindo e passei a vender só o serviço, ensinar a costura. Hoje eu ensino o que o aluno quiser aprender, seja bolsa, roupa de adulto, de pet, roupa infantil, artigo de decoração”, enumera.
A maior parte de seus alunos, no começo, era estudantes de moda que queriam ter uma base de costura. “Foi rápido o crescimento. Tive uma aluna mais famosa, que acabou divulgando muito o curso. Em um ano e meio mais ou menos, saltamos de um para 60 alunos”, diz.
A troca de apoio que o curso oferece, para Sara, é um fator natural. Muitos dos alunos procuram o curso por hobby e a costura acaba sendo uma espécie de terapia coletiva.
“O ser humano tem deixado de lado é essa convivência prazerosa com o outro, que é o que ocorre aqui. Porque não é só a construção de uma peça de roupa. O aluno vem para cá e troca ideia com as pessoas. Troca carinho, conta um pouco da sua vida, das coisas que está sentindo, recebe um feedback, recebe um abraço, toma um cafezinho, come um biscoito”, disse.
Hoje em dia a vida tá tão corrida que as pessoas se esquecem um pouquinho de conviver prazerosamente.
A junção de apoio e ensino faz com que o Lull seja uma base de incentivo para quem nunca tocou em uma máquina de costura.
“A gente acaba sendo 60% uma rede de afeto e 40% vontade real de costurar. Alguns alunos que vêm inseguros, querendo aprender alguma coisa para ganhar algum dinheiro e aqui a gente dá total força, total incentivo. A gente tem algumas marcas que já saíram daqui, de alunas que saíram daqui e agora estão em feiras colaborativas, mas não é a maioria”, pondera.
A maioria vem pra cá pra ter esse momento de troca. Eles estão aqui porque querem esse momento para si e para conviver.
Sociedade
Com o crescimento do ateliê, veio também a sociedade com uma ex-aluna, a administradora Michele Queiroz. Diferente de Sara, Michele não tinha uma mãe costureira para inspirá-la. O amor, nasceu naturalmente.
A administradora se viu submetida a estresse e cansaço, enquanto trabalhava à frente de uma multinacional. Ela chegava a viajar por cinco estados em uma semana, e foi em um acessório de moda que viu a chance de encarar uma rotina mais tranquila, há cinco anos.
“Um dia, na última empresa em que eu trabalhei, chegou uma funcionária com uma bolsa muito bonita. Quando perguntei de onde era, ela me disse que ela mesma tinha feito. Então, ela me indicou o curso no Lull. Achei interessante e resolvi ligar. Falei com Sara e disse que não sabia costurar, mas que queria aprender e não tinha tempo. Comecei a fazer a aula no sábado de tarde, que era o único horário em que eu podia. A paixão foi imediata”, relembra.
Sara então traçou um plano de aulas para alunos como Michele, que querem aprender, mas não têm tempo. “No primeiro dia de aula, você faz uma máquina funcionar. Depois das três horas que passa com ela, você já sai com uma peça pronta, feita por você. Então é como um troféu”.
Michele começou a costurar para si, para o marido, para amigos. E então, descobriu que estava grávida. “A maternidade me fez costurar para minha filha, enquanto eu trabalhava na outra empresa. Saí de licença maternidade, acabei me afastando um pouco do ateliê também e nisso eu já tinha uma máquina de costura, e tinha montado um ‘quarteliê’, um quartinho ateliê”, ri.
Depois de ser desligada da multinacional, e montar e desmontar uma loja virtual de vestidos infantis em parceria com uma amiga, ela recebeu o convite inusitado de Sara. “Eu perguntei: ‘por que eu? ’ Não tenho um histórico, não sou formada em moda. E ela disse que eu tinha o que ela buscava em um sócio, que era a vontade de empreender e o amor pela costura”.
Em novembro do ano passado, as duas abriram a filial da Lull em Lauro de Freitas, na região metropolitana de Salvador.
“A gente percebeu que várias alunas, tanto de Lauro quanto de cidades mais próximas a Lauro que Salvador, como Camaçari, tinham dificuldades em vir porque a distância é muito grande. Vir uma vez na semana, no início é legal, mas depois de um tempo começa a ficar chato. Se a pessoa vem por prazer, acaba não sendo prazeroso o trajeto e aí acaba que ela desiste, em dois ou três meses”, avalia Sara.
Michele complementa: “Nossa vontade é de expandir muito mais. Lauro foi só o começo, só a pontinha. A gente quer espalhar para todos os cantos”.
Fonte: G1