Compartilhar afetos, aceitar orações, doar produtos e exercitar a escuta sem esperar nada em troca. Se a ideia parece distante, mais de 43 mil mulheres de Salvador mostram no grupo do Facebook “Eu aceito…Eu ofereço…” que é possível, sim, colocar em prática o termo sororidade.
(O G1 publica, durante esta semana, uma série especial de reportagens em comemoração ao Dia Internacional da Mulher)
O grupo secreto de mulheres na rede social, criado em Salvador pela atriz Isabela Silveira, em julho de 2016, se tornou uma plataforma colaborativa onde mulheres ofertam desde móveis, eletrodomésticos e uma festa infantil completa, a boas vibrações, companhia, e tantas outras manifestações de amor.
“Eu fico brincando que é uma ‘micro revolução’. Porque é sobre afeto, é sobre escuta, sobre autoescuta”
Segundo Isabela, em menos de dois anos, o “Eu aceito…Eu ofereço…” cresceu muito rápido porque está conectado com as questões do fluxo feminino de ajudar, que é uma coisa ancestral, essa questão das mulheres cuidarem de outras mulheres. Além das mais de 43 mil integrantes, outras quatro mil estão na fila de espera.
“É sobre perceber-se para perceber o outro de uma forma cuidadosa”
Segundo ela, no início, as pessoas não entendiam que não tinham que dar nada em troca do que ganhavam. “Isso é muito louco, porque várias vezes a gente dá as coisas sem querer nada em troca, mas a gente acha impossível pedir algo sem esperar ter que dar alguma outra coisa”.
São quatro regras básicas do “Eu aceito…Eu ofereço…”:
- Apenas mulheres;
- Nada de trocas de nenhuma natureza [como ‘eu ofereço um celular e em troca aceito uma televisão’, por exemplo];
- Nenhum tipo de divulgação;
- Nenhum conteúdo externo;
“Essas regras são o segredo do funcionamento”, afirma a atriz.
Com mais de 100 grupos similares, Isabela destaca que mulheres de outras cidades e até países entraram em contato com ela e pediram autorização para prosseguir com a ideia.
“Tem um monte de grupo ‘filha’ que a gente vai alinhar, finalmente. Eles vão virar uma chancela, para ficar todos juntos, para que a gente fortaleça quem está na mesma vibe”, conta.
Nascimento
A ideia do grupo surgiu depois que Isabela conseguiu enfrentar uma depressão. Ela conta que demorou a enxergar o problema porque ainda era “funcional”, pois continuava a ser produtiva e saía para trabalhar.
“Eu só percebi que precisava de ajuda quando eu fui arrumar a minha casa, que tinha coisas acumuladas até o teto, literalmente. Tinha vezes que eu precisava pular os objetos para circular”
Porém, foi quando deixou o emprego e descobriu que estava grávida, que Isabela resolveu procurar apoio, em abril de 2016. “A limpeza passou a não ser mais uma questão de opção. Eu precisava arrumar a casa para abrir espaço físico e emocional para o bebê que vinha”, conta.
Isabela teve uma gravidez de médio risco e, com isso, ela precisava de alguém para subir em um banco, pegar objetos no alto. “Eu me sentia travada. Quanto mais eu precisava fazer, mais ansiosa eu ficava, mais os hormônios da gravidez agiam”, lembra.
Nesse período, Isabela conta que se aproximou de alguns grupos femininos e da ideia de feminino diverso e colaborativo, e decidiu escrever diretamente para 33 mulheres no Facebook e todas elas atenderam ao pedido.
“Eram pessoas que eu achava legais. Eu pedi ajuda para fazer uma faxina na minha casa, abri meu coração e falei tudo. Eu poderia ter contratado alguém para fazer a faxina, mas eu queria poder chorar enquanto rasgava um papel, eu queria alguém que me motivasse a seguir, foi isso que essas mulheres fizeram por mim”, lembra.
“A empatia, a disponibilidade, a escuta: foi isso o que eu ganhei”.
Além das 33 mulheres, Isabela convidou também uma ex-colega de faculdade, com quem não tinha muita aproximação, mas que admirava. A partir daí, ela conseguiu enxergar naquela força-tarefa uma rede de apoio que poderia se estender para outras mulheres. Em julho de 2016, com a casa organizada, ela decidiu que ia proporcionar a mesma experiência para outras mulheres.
“O grupo nasceu na minha cabeça. Chamei uma das mulheres que me ajudou, e hoje é uma das moderadoras, a Ana Fernanda, criei e saí convidando. Em uma semana, tinham cinco mil mulheres e essa é a demonstração de que a gente está nessa vibe de viver colaborativamente”, afirma.
Ela conta que o grupo ficou com o status aberto durante 48 horas e precisou ser mudado para fechado. Depois, passou para secreto porque não tinha mais como administrar o número de pessoas.
“Eu acho que, se alguém tivesse me dito que aquele terror que eu tava sentindo, em abril de 2016, ia se transformar num fluxo de ajuda mútua, cuidado e escuta, para milhares de mulheres, em várias partes do mundo, eu ia dizer que era mentira, que era impossível”, revela.
Para Isabela, o capitalismo fez com que as pessoas perdessem a percepção para os fluxos horizontais.
“As pessoas têm repensado o uso dos recursos. Não jogam mais fora como jogariam em outro momento porque sabem que aquilo pode parecer mínimo, mas na vivência do outro, pode ser muito útil e muito importante”
No “Eu aceito…Eu ofereço…”, Isabela conta que as pessoas podem pedir qualquer coisa e o respeito ao querer do outro é prioridade. Entre tantas histórias que ela já se deparou e presenciou, Isabela tem orgulho da construção coletiva do grupo e afirma:
“Não é sobre salvar, é sobre ajudar. Pedir ajuda e ter uma mediação”
Sempre disposta e bem humorada, Isabela divide a moderação com outras sete mulheres. Ela conta que, do início do grupo até agora, as integrantes entenderam a dinâmica da proposta e essa “supervisão” coletiva contribui para o sucesso do “Eu aceito…Eu ofereço…”.
“Essa ajuda descompromissada e a capacidade que as mulheres têm de cuidarem de si caberia nesse mundo onde a gente vive hoje? Eu ia dizer que era uma utopia, mas se tornou a utopia do possível, do real. E qual o próximo passo?”
Fonte: G1 nordeste