Detalhes em neon que brilhavam no escuro, elementos como água, fogo e fumaça, além de carros alegóricos com partes móveis foram alguns dos recursos usados pelas escolas de samba que desfilaram no primeiro dia do Grupo Especial no Sambódromo da Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, na noite desse domingo (2) e madrugada de hoje (3). As religiões de matriz africanas e afro-indígenas foram o centro das apresentações.
A escola que abriu os desfiles foi a Unidos de Padre Miguel, a grande vencedora da Série Ouro de 2024 e que retorna ao Grupo Especial depois de mais de 50 anos, já que a última participação foi em 1972.
A agremiação vermelha e branca entrou na Sapucaí às 22h, com o enredo Egbé Iyá Nassô, uma homenagem a Iyá Nassô, uma das fundadoras do Candomblé da Barroquinha, na Bahia, que deu origem ao Terreiro Casa Branca do Engenho Velho, em Salvador, o templo de religião de matriz africana mais antigo do país.
Um dos elementos mais marcantes foi o Boi Vermelho, rubro da mesma cor de Xangô, de Vila Vintém, localizada entre os bairros de Realengo e Padre Miguel, na zona oeste da capital fluminense, berço da escola de samba.
O desfile contou ainda com a presença, em um dos carros alegóricos, dos filhos do Terreiro Casa Branca do Engenho Velho, aqueles que herdaram dos ancestrais os cuidados com a fé e com a casa.
“Para nós do Ìyá Nassô foi um evento maravilhoso, não poderia ser melhor” diz a Iyálorisá Neuza Cruz, logo após descer do carro alegórico ao fim do desfile. “Foi um presente, um presente ancestral que recebemos. E estamos muito felizes”.
Segundo a escola, o enredo apresenta a mulher negra como formadora de uma das faces mais marcantes da nação, sendo ela, ao mesmo tempo, a “Mãe de todos os Ilês [casas ou terreiros]” e a alegoria representativa da força de todas as mulheres negras que tecem a história cotidianamente, em especial as do Egbé [comunidade] Vila Vintém, o que justifica a importância da narrativa da Unidos de Padre Miguel neste carnaval.
Itã de Oxalá
A segunda escola a desfilar foi a Imperatriz Leopoldinense, de Ramos, na zona norte da cidade, que tem nove títulos do grupo de elite, sendo o último em 2023.
O enredo da escola de cores verde, branco e dourado – Ómi Tútu ao Olúfon – Água fresca para o senhor de Ifón – trata da cerimônia das águas de Oxalá, baseada em uma mitológica viagem do orixá, rei de Ifón, ao reino do amigo Xangô, durante a qual sofreu por ações vingativas cometidas por Exu.
“Foi maravilhoso! Eu acho que a gente cumpriu o que queria fazer. Passamos bem, passamos no tempo, passamos felizes. Acho que conseguimos mostrar o que é o Itã [lendas da cultura iorubá] de Oxalá. E é isso, agora é esperar a Quarta-feira de Cinza”, disse a presidente do bloco, Cátia Drumond.
A escola explica que, em linhas gerais, Itã é um relato da cultura iorubá que transmite conhecimento, valores e ensinamentos a partir de passagens míticas e biográficas associadas aos deuses do panteão africano. Os relatos são resguardados pela oralidade e tèm o papel de preservar memórias sagradas e ritualísticas, uma vez que, na cultura iorubá não existem registros escritos e a palavra é veículo de conexão com o divino. A narrativa é, portanto, fruto da escuta.
Malungueiros da Jurema
A terceira escola a desfilar foi a atual campeã, Unidos do Viradouro, escola vermelha e branca de Niterói, no grande Rio, que busca seu quarto título com o enredo Malunguinho: o Mensageiro de Três Mundos.
O enredo homenageia o líder quilombola do Catucá, em Pernambuco, João Batista, conhecido como Malunguinho, perseguido e morto por autoridades imperiais em 1835. Na religião Jurema, Malunguinho, evocado no início das cerimônias, é a única entidade que pode ser chamada de Mestre, Caboclo e Exu.
O desfile contou com diversos recursos como adereços em neon, que brilhavam no escuro, além de carros alegóricos com água, fogo e fumaça.
Ao encerrar o desfile, Duda Almeida, que está grávida da primeira filha, não conteve as lágrimas. “Espero que a gente consiga alcançar o bicampeonato, merecemos muito. Eu estou muito feliz de ter atravessado essa avenida. Grávida da minha primeira filha, sou a terceira geração da minha família que desfila grávida. É muita emoção. Estou muito feliz de ter conseguido”.
Em um dos ensaios da escola, ela publicou nas redes sociais: “Agora, Angela pode dizer que desfila desde a barriga da mãe dela!”. Duda desfilou na ala Chama de Liberdade, Fogo da Justiça e Fagulha Primordial, que contou com três destaques performáticos representando o calor da restauração e justiça. Ela representou o Fogo de Justiça.
O desfile contou com uma ala para homenagear a nação Jurema, a ala Malungueiros da Jurema. Entre os homenageados estava o coordenador da rede Jurema de Pernambuco, Jorge Arruda.
“Estou encantado, feliz e gratificado, porque é uma resistência quilombola, é uma resistência negra, de educação antirracista”, disse. “O desfile foi surpresa porque nós não sabíamos, nem a roupa nós sabíamos, foi tudo muito secreto, e eu ainda estou com as pernas tremendo. É grandioso o carnaval, é grandioso ver Malunguinho porque há 25 anos nós começamos esse trabalho, que hoje a gente vê coroado na Sapucaí”.
Verde e rosa
Foi a verde e rosa Estação Primeira de Mangueira que encerrou os desfiles do primeiro dia do Grupo Especial. A escola, que é dona de 20 títulos, quer levantar a taça novamente, depois de seis anos.
O enredo À Flor da Terra – No Rio da Negritude Entre Dores e Paixões fala da persistência, no Rio de Janeiro, da cultura bantu, comum a diversos povos da África subsaariana, como habitantes do Congo, de Angola e Moçambique. A ideia do enredo é exaltar essa cultura, que costuma ser relegada, apesar de grande parte dos escravos que aportaram no Brasil ser bantu
O desfile começa com a água, representando o oceano que conecta os dois continentes, África e América, em uma história de dor e transformação. E segue até os dias atuais, em um futuro ancestral, moldado pela memória dos antepassados, em busca da construção de uma sociedade com justiça social.
Um dos carros alegóricos trouxe diversas caixas de som empilhadas, remetendo aos sons e danças que hoje ecoam nas ruas, como o passinho, o samba e o funk.
Ayla, foi uma das crianças que desfilou na ala infantil, chamada É Preciso um Quilombo para Criar um Moleque. Ela está no segundo desfile, ao lado da tia, Janaína Marques, que está no 22º desfile como passista. Para a tia, o enredo deste ano é muito importante. “É um tema muito importante, que traz a nossa vivência. A história do povo miscigenado do Brasil e que conta nossa história”, diz a tia.
Para quem assistiu o desfile e também para quem não pode ver, Ayla deixa um recado: “Torçam para a gente ganhar”.
Requisitos
Todas as escolas cumpriram o tempo determinado para os desfiles, que é de, no máximo, 80 minutos. A Mangueira terminou o desfile com o tempo cravado em 79 minutos. Ao menos três pessoas precisaram ser socorridas na dispersão por terem passado mal por causa do calor ou mesmo do peso dos figurinos.
Neste domingo foi a estreia do novo modelo de quatro desfiles por noite, durante três dias de apresentação do Grupo Especial. Até o ano passado, eram seis escolas por noite em dois dias, domingo e segunda-feira. Os desfiles começaram às 22h e terminaram por volta das 4h desta segunda.
As escolas são avaliadas em nove quesitos: bateria, samba-enredo, harmonia, evolução, enredo, alegorias e adereços, fantasias, comissão de frente e mestre-sala e porta-bandeira.
O resultado será divulgado na quarta-feira (5), quando será conhecida a escola campeã.
Os desfiles seguem na noite de hoje, com Unidos da Tijuca, Beija-Flor de Nilópolis, Acadêmicos do Salgueiro e Unidos de Vila Isabel. Nesta terça se apresentam Mocidade Independente de Padre Miguel, Paraíso do Tuiuti, Acadêmicos do Grande Rio e Portela.
Por Agência Brasil
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