O ano de 2025 iniciou com chuvas intensas no Sul e Centro-Oeste do país e estiagem no Nordeste, evidenciando, a cada ano mais, os efeitos da mudança climática. Com a crise, desigualdades também são acentuadas e novos desafios globais se impõem.
A urgência no enfrentamento à crise e a busca por soluções, temas centrais da 30ª Conferência sobre Mudança do Clima (COP30), que será realizada este ano no Brasil, são analisadas pela pesquisadora Mercedes Bustamante, da Universidade de Brasília (UnB).
Em entrevista exclusiva à Agência Brasil, a colaboradora do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da Organização das Nações Unidas (ONU) afirma que a crise climática é uma amplificadora de outras crises.
“Ela vai contribuir para o agravamento de outras crises que nós já vivemos. Ela agrava a desigualdade, agrava o problema da fome, agrava o problema dos recursos hídricos, das migrações humanas, dos conflitos geopolíticos”, destaca.
Na entrevista, ela aponta ainda alguns caminhos para amenizar as instabilidades e afirma que a primeira e mais urgente ação é trabalhar nas causas do aquecimento global.
A especialista destaca ainda a importância de acordos globais do clima, com o Acordo de Paris, adotado em 2015, durante a COP21, a 21ª Cúpula do Clima das Nações Unidas, em Paris. O principal objetivo do acordo é manter o aquecimento global do planeta abaixo de 2°C até o final do século e buscar esforços para limitar esse aumento até 1,5°C.
“Porque não adianta, por exemplo, o Brasil reduzir suas emissões [de gases do efeito estufa], se outros países não o fazem. É preciso que você olhe para o lado e a pessoa que está ao lado deve fazer o mesmo esforço que eu estou fazendo.”
Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista com a especialista:
Agência Brasil: Quais são os efeitos das mudanças climáticas sobre os seres humanos?
Mercedes Bustamante: Eu acho que a gente vai viver pior. O secretário-geral da ONU [António Guterres] fala isso muito bem. A crise climática é uma amplificadora de outras crises. Ela vai contribuir para o agravamento de outras crises que nós já vivemos. Ela agrava a desigualdade, agrava o problema da fome, agrava o problema dos recursos hídricos, das migrações humanas, dos conflitos geopolíticos. Nós construímos as nossas sociedades nos últimos 10 mil anos em um período em que o clima da terra tinha uma relativa estabilidade. Isso significa que a gente se organizou para contar com essa estabilidade climática. E agora que a gente entra nesse processo de transição, de instabilidade climática, estamos percebendo as consequências que isso vai ter para a forma como organizamos a nossa vida. Eu acho que o quadro mais crítico que a gente vê hoje é o aumento da desigualdade. Uma concentração de renda cada vez mais na mão de poucas pessoas. Isso nos torna ainda muito mais dependentes do fluxo de recursos para combater as ações da mudança do clima, mas também para encaminhar ações de adaptação, ou seja, como é que a gente pode fazer para reduzir os impactos daquilo que vem por aí. O que vemos com muita preocupação é que se não tiver uma vontade política, uma clareza, um engajamento de atores privados também, sobretudo aqueles que têm um controle maior da economia, realmente vamos entrar num período de muita instabilidade, muita insegurança.
Agência Brasil: O que é preciso ser feito para amenizar essas instabilidades?
Mercedes Bustamante: Eu acho que hoje precisamos contar com todas as soluções possíveis. É claro que a primeira ação importante é trabalhar nas causas do aquecimento global. Realmente é uma transição energética feita com seriedade, rapidez e robustez, que diminua a nossa dependência dos combustíveis fósseis. Acho que hoje realmente esse caminho de abrir mão das reservas de petróleo e investir muito fortemente em outras fontes de energia que não causem o aquecimento global é o dever de casa obrigatório para todas as economias, para todos os setores. Depois, nós temos opções que também passam pelas escolhas individuais, de consumo, de mobilidade, mas é o que eu sempre falo, o indivíduo, para que ele possa fazer as melhores opções, ele precisa das políticas públicas que pavimentem esse caminho. Quando a gente fala, por exemplo, de mobilidade urbana, de as pessoas abrirem mão dos seus veículos particulares, é que elas podem contar com um sistema público de qualidade, que funciona no horário, que é limpo, que é acessível, e isso é política pública. Quando você olha a questão de reduzir o risco pela construção de moradias em locais que são seguros ou que não são apropriados, significa que a política pública tem que desenhar moradias em locais que tenham atividade econômica ativa, porque não adianta você jogar as pessoas para longe, onde não tem atividade econômica, onde elas não vão ter emprego, saúde, trabalho. É necessário fazer esse planejamento das cidades. As cidades concentram um grande número de pessoas, o que significa que elas concentram problemas, mas podem ser também o foco de muitas das soluções. É preciso realmente repensar todo esse planejamento. E eu acho que os indivíduos fazem as opções a partir do momento em que veem alternativas que são viáveis e que são colocadas pelo poder público. Novamente, eu repito, que é muito importante, hoje, com a concentração de capital na mão de poucos, a responsabilidade do setor financeiro de apoiar as iniciativas que reduzam a crise climática. O mundo como um todo vai perder. A atmosfera é um bem comum global. Todo mundo precisa dela. Então, existe espaço para que todos os setores possam atuar. Agora, esse processo de coordenação, efetivamente tem que ser feito pelos governos, e não de forma isolada. É por isso que acordos globais do clima são tão importantes. Porque não adianta, por exemplo, o Brasil reduzir suas emissões [de gases do efeito estufa], se outros países não o fazem. É preciso que você olhe para o lado e a pessoa que está ao lado deve fazer o mesmo esforço que eu estou fazendo dentro do seu contexto.
Agência Brasil: A mudança climática já tem efeitos efetivos, como o aumento da temperatura global. Quais as adaptações nas cidades são mais necessárias e urgentes?
Mercedes Bustamante: Eu acho que o Brasil tem um dever de casa novamente para fazer com as suas áreas urbanas. A gente vem, desde 2011, sofrendo com esses eventos de chuvas extremas, e a missão primeira sempre é salvar vidas. Efetivamente, como é que a gente tira as pessoas dessas áreas de risco? Eu acho que esse é um ponto importante. Todas essas cidades que sofreram impactos [das chuvas], como o Rio Grande do Sul, que a gente vive ainda os efeitos, a Região Serrana do Rio de Janeiro, lá em 2011, é necessário olhar o processo de reconstrução. Essa reconstrução tem que ser nova. Vai reconstruir, mas vai reconstruir de uma outra forma talvez em outros lugares. É onde eu acho que ainda estamos precisando avançar muito mais no planejamento. Primeiro, tem que pensar, e se não acontecesse? Depois, acontecendo, como é que a gente vai lidar com essa situação? E pensar que se as pessoas retornam para os locais onde elas, e sucessivas gerações, vêm sofrendo com o mesmo tipo de catástrofe, é porque não tem alternativa. Eu acho que é preciso pensar muito rapidamente nisso. E outro ponto que eu acho que se precisa olhar, como no Brasil, é a agricultura, o setor que mais emite gases de efeito estufa, que envolve o desmatamento de florestas. É pensar que na conservação dos recursos naturais, o Brasil tem uma dupla oportunidade de olhar o problema da mitigação, de reduzir as emissões de gases de efeito estufa e aumentar o sequestro desse gás. Ao mesmo tempo, a recuperação dessas áreas verdes, sejam elas urbanas, sejam na parte do campo, seja a conservação de áreas naturais, é também uma ação de adaptação. Então, a gente ganha pelos dois lados, se fizer uma gestão ambiental correta.
Agência Brasil: Olhando para a política climática global, como você acha que as decisões de outros países, como as anunciadas pelo novo presidente dos Estados Unidos [Donald Trump reafirmou a intenção de deixar o Acordo de Paris], influencia no enfrentamento a essas crises?
Mercedes Bustamante: Com certeza era muito melhor você ter o país que é o segundo emissor global de gases de efeito estufa junto nessa pauta. Reduzindo as emissões e combatendo os impactos da mudança climática. Agora, os Estados Unidos já saíram num outro momento do Acordo de Paris. É óbvio que esse segundo mandato de Donald Trump tem aspectos que são diferentes, mas hoje muitos aspectos da transição energética, iniciativas de empresas, que as companhias já fizeram, não vão voltar para trás. A gente ainda vai precisar entender o que realmente vai significar esse novo mandato do presidente [Donald] Trump. Mas que isso não seja uma carta branca para que os demais países também deixem de fazer os seus esforços, porque, novamente, os impactos vão ser distribuídos por todos os países, e vão afetar as populações mais vulneráveis desses países também. O que significa também mais combustível para conflitos sociais, para desgastes da classe política, para dificuldades que a gente já vem enfrentando. É preciso ter muita atenção a esse tema, como um tema que veio para ficar. Ele pode ter impulsos, onde você tem governantes que estão mais afeitos a essa agenda e outros menos, em outro momento, mas essa é uma agenda que não vai sumir. Ela está aí para nos acompanhar até o final do século ou mais.
Agência Brasil: Tem mais algum ponto que você considera importante a gente destacar em relação à questão da mudança climática?
Mercedes Bustamante: Eu acho que o tempo joga muito contra a gente nessa questão. Eu falo que essa é uma pauta que não vai sumir, mas é óbvio que quanto mais cedo tratarmos dela, melhor. Se o problema tivesse sido abordado 30 anos atrás, e não o foi porque as forças negacionistas se organizaram muito rapidamente, talvez a gente hoje estivesse em um outro patamar dessa discussão. Vamos esperar que as pessoas percebam que o senso de urgência é primordial para discutir essa questão também.
Por Agência Brasil
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