Uma das primeiras coisas que uma criança recebe ao nascer é a Certidão de Nascimento. Mas, para Maria Angelina dos Santos, este momento demorou quase sete décadas para acontecer. Somente aos 66 anos a idosa recebeu o primeiro documento que comprovasse o básico: que ela existe. Assim como para Maria Angelina, o direito fundamental de ser cidadão perante a Lei ainda é considerado sonho em municípios do Ceará. Os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) identificaram um total de 4.746 sub-registros de nascimento no estado. Destas pessoas sem comprovação de existência, 2.627 (55%) estão no interior.
A falta do documento impossibilita, dentre outras coisas, o Cadastro Único de Programas Sociais do Governo Federal – que permite o recebimento de benefícios sociais; matrícula em instituições de ensino; acesso ao mercado de trabalho; e recebimento de benefícios previdenciários, por exemplo. O primeiro documento é necessário, também, quando a pessoa tenta emitir o Cadastro de Pessoa Física (CPF), Carteira de Identidade ou Registro Geral (RG) e até o Cartão de Vacinação.
A situação vivenciada por dona Angelina pode ser mais comum do que se pensa, já que o sub-registro só é identificado na emissão do primeiro documento, mesmo que fora do prazo adequado. É considerado sub-registro quando a criança não recebe a Certidão de Nascimento no próprio ano ou até o fim do 1º trimestre do ano subsequente ao nascimento.
A realidade é mais recorrente em municípios que não contam com uma estrutura adequada para fazer o registro no tempo certo. Demétrio Saker Neto, juiz auxiliar da Corregedoria-Geral da Justiça do Ceará, explica que a situação decorre da “falta de conhecimento por parte da população da importância do registro e de sua gratuidade.” Ele diz, também, que “a distância do domicílio ao cartório e falta de iniciativa dos pais contribuem para a existência do sub-registro de nascimento no interior”.
Após a espera, sonho realizado: dona Angelina vive, hoje, em Juazeiro do Norte, na Região do Cariri, e agora figura num grupo mais amplo. O último levantamento do IBGE revela que, no município, 132 pessoas receberam o primeiro documento fora do prazo – é o segundo maior número de sub-registros no interior do Estado, ficando atrás, apenas, de Canindé, que somou 260 em 2017, ano do último levantamento.
Dona Angelina passou parte da vida morando na rua, sem saber ler nem escrever. Sem a documentação básica, sentiu na pele os impactos que isso trouxe. Hoje, morando em um apartamento alugado, chegou a ficar sem água por falta da titularidade na conta, que só pode ser feita com Certidão de Nascimento. Sua amiga, Cícera Idelma, foi a responsável por levá-la ao Cartório Pariz, na própria cidade onde que mora, para retirar a documentação.
O tabelião Maxwell Pariz conta que dona Angelina chegou ao cartório no último mês de agosto, contou sua história e o desejo de ser reconhecida como cidadã. “Quando ela veio, conversamos durante duas horas. Depois de levantar todas as informações (que durou quase um mês), nós fizemos o registro de nascimento. Faço isso a cada dois meses, mais ou menos”, relata. Maxwell precisou conversar com outros órgãos, colher informações adicionais e, no último dia 11, conseguiu emitir a Certidão de Nascimento da idosa.
De posse do primeiro documento oficial, Maria Angelina decidiu estender o sonho e, na última semana, já conseguiu retirar a Carteira de Identidade, Título de Eleitor e a Carteira de Trabalho.
A espera para existir
Com o mesmo problema, mas longe da solução, a família de Maria da Paz, 53, sofre até hoje com a falta de documentos. Três dos oito filhos da mulher amargam as marcas do sub-registro. Vivendo no distrito de Jaibaras, em Sobral, permanecem anônimos aos registros Antônio Carlos, 22; Emanoel Messias, 19; e Antônia Sheila da Silva, 15. A filha mais velha e porta-voz dos irmãos, Carla da Silva, 32, lamenta a situação. “Minha mãe se descuidou e não fez os registros desses meninos. O juiz mandou os ofícios para os hospitais e os hospitais não mandaram a resposta até agora”.
Ela conta, ainda, que a irmã, de 15 anos, ficou seis meses longe da escola pela falta do documento. “Ela estudava só com o cartão de vacina, mas, quando passou para o 9º ano, que foi para o colégio estadual, não aceitaram mais. Aí, um novo diretor entrou na escola, me chamou e disse que um adolescente não podia ficar fora da escola. Minha mãe teve que assinar um termo de compromisso até ela ser registrada”, diz Carla. O processo está correndo na Justiça há quase dois anos.
Registro fora do prazo
Para a expedição de Certidão de Nascimento fora do prazo, a pessoa deve procurar o cartório de registro civil mais próximo de posse dos seguintes documento: certidões negativas de nascimento emitidas por todos os cartórios de registro civil do município de origem; certidão negativa eleitoral emitida pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE); certidão criminal emitida por fóruns do município de origem; certidão negativa emitida pelo Arquivo Público do Estado.
Com o intuito de erradicar os sub-registros, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) implantou o Programa de Erradicação do Sub-registro Civil de Nascimento, que utiliza o sistema informatizado interligado entre as maternidades e os cartórios para que os recém-nascidos saiam do hospital já com a certidão. Na Capital, Fortaleza, 10 cartórios possuem unidades interligadas. Já no interior, por conta das limitações, nem todas as instalações foram feitas.
Nestes casos, os profissionais das localidades ou zonas onde existe maternidade integrante do Sistema Único de Saúde, têm que se deslocar aos locais para recolher as declarações de nascidos vivo. Após isso, as certidões são lavradas nos respectivos cartórios e entregues aos pais no prazo máximo de 24 horas. Segundo a Corregedoria-Geral da Justiça do Ceará, é possível, também, firmar convênios entre a maternidade/hospital e os cartórios com o intuito de garantir que o registro seja realizado antes do recém-nascido receber alta hospitalar.
Fonte: g1.com