O baião “Paraíba”, de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga, foi escrito em 1946 e lançado primeiramente em 1950, por Emilinha Borba. A versão mais conhecida é a de seu autor, que foi gravada em 1952. A história conta que a canção foi escrita para narrar a história da força do estado da Paraíba. Mas ela foi ganhando outros entendimentos no decorrer dos anos e, atualmente, é questionada por quem trava a luta pela igualdade de gênero.
De acordo com Luceni Caetano da Silva, que é professora do departamento de música da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e doutora com foco em história da música na Paraíba, a história da música de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga começa em 1930 e está inteira permeada pela questão histórica que envolve a Paraíba.
A professora explica que Washington Luiz, à época presidente da República, apoiava Júlio Prestes como sucessor ao cargo. Por isso, ele pediu para que todos os estados apoiassem o seu candidato. “Três estados não apoiaram: Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Paraíba”, relata. Com isso, Getúlio Vargas, do Rio Grande do Sul, também se candidatou como presidente para concorrer às eleições e convidou João Pessoa, governador da Paraíba, para ser o vice na chapa da Aliança Liberal.
“Nessa mesma época, na Paraíba, João Pessoa estava combatendo os inimigos de partido e travando, digamos assim, uma guerra com Zé Pereira, o coronel José Pereira, de Princesa Isabel, que era aliado de João Dantas, oponente político de João Pessoa, que escrevia nos jornais insultos a João Pessoa”, detalha Luceni.
A partir de então, os conflitos foram aumentando. A professora conta que João Pessoa, supostamente, mandou invadir a casa de João Dantas. Lá, foram encontrados pertences, incluindo cartas da professora Anaíde Beiriz, que dizia ser ela uma amante de João Dantas. As cartas foram divulgadas amplamente em jornais da época.
Chateado com a atitude de João Pessoa, Dantas resolveu tirar satisfações. “Ele foi até a Confeitaria Glória, no Recife, onde João Pessoa estava, e o assassinou com um tiro”, conta Luceni. Segundo a professora, o fato foi o estopim para a revolução de 1930. E a Paraíba, por causa da morte de João Pessoa, foi o primeiro estado a dar um passo para acontecer o embate.
Depois do contexto histórico, vem a música de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Os autores, conforme relata Luceni, fizeram a canção se referindo à Paraíba, ao estado da Paraíba, no feminino, para dizer que é “mulher macho, sim, senhor”, por ser forte e dar o pontapé inicial para culminar na revolução de 30.
“Até mesmo o trecho onde ele ‘manda um abraço para ti, pequenina’, tem a ver com o fato da Paraíba ser um estado pequeno territorialmente. E, ‘mulher macho’, ter força para iniciar uma revolução estadual”, complementa a professora.
Mulher forte, sim, senhor
Embora os livros narrem uma memória mais histórico-política do que social, a música interpretada por Luiz Gonzaga, principalmente na atualidade, é muito mais discutida quando se quer retratar a mulher como uma pessoa forte, interpretação que também caracterizou a Paraíba na canção, através da expressão “mulher macho”.
O que se questiona, no entanto, é porque a mulher precisa ser tratada como homem para ser considerada forte. Embora a história conte que a expressão faz menção ao estado da Paraíba, um dos poucos com substantivo feminino, por isso tratado como mulher, a música enfatiza a força da mulher paraibana.
É como concorda a cantora e compositora paraibana, Val Donato, que aborda em suas canções temas mais voltados para o questionamento da consciência universal e existencial. Ela acredita que a força retratada na música traz uma superioridade que vem do masculino. “Ele ainda enfatiza um adjetivo de diminuição que pretende soar carinhoso, mas diminui, que é ‘um abraço para ti, pequenina’”, explica Val.
Apesar de não necessariamente tratar a mulher como “macho”, mas sim a Paraíba, o compositor utiliza da expressão feminina para fazer a comparação. Apesar de mulher, forte. “Com todo respeito à obra de Luiz Gonzaga, longe de mim atacar nesse sentido, mas hoje a gente não deve reforçar esse tipo de mensagem, de que a força, a superioridade, é sinônimo de masculinidade, porque a gente foge cada vez mais do sentido de igualdade do homem e da mulher”, frisou.
O que não dá para fazer, segundo Val, é perpetuar a referência de que o masculino é superior e mais forte e, naturalmente, a mulher é subordinada a esse poder masculino. “Hoje, a gente com a consciência melhor, nós enquanto artistas, principalmente, não podemos perpetuar esse tipo de linguagem ou pensamento, porque a gente já vive ainda num mundo muito machista. E o nosso dever é lutar no sentido de igualdade e não de superioridade, seja masculina ou feminina”, disse.
Quem concorda com Val é a rapper Kalyne Lima, do grupo Sinta A Liga Crew. Tradicionalmente conhecido por retratar músicas de empoderamento e cunho feminista, a vocalista acredita que a época também influenciou na construção da letra e no entendimento atual da música. “Ao comparar as mulheres com os homens estavam dando a elas as atribuições e qualidades que os homens tinham”, comentou.
“Com o passar do tempo a gente consegue evoluir cada vez mais no entendimento aos direitos humanos, no entendimento aos direitos individuais, e a gente vai progredindo sobre a leitura que a gente faz de mundo. E essa frase acaba ficando ultrapassada e tendo outra conotação quando a gente compara com o que a gente sabe de hoje em dia”, disse Kalyne.
Hoje a música tem a sua conotação machista, porque é inevitável atribuir ao “mulher macho” um caráter de preconceito ao gênero. No entanto, Kalyne lembra que hoje a mulher consegue ter uma posição social onde é reconhecida enquanto mulher, a partir dos seus valores, das suas problematizações, sem precisar ser comparada a outro segmento social. “Ela é mulher e tem valor por ser mulher”, enfatizou.
No entanto, há também quem não entenda a canção como uma afronta às mulheres. Elba Ramalho, natural da cidade de Conceição, mundialmente conhecida por sua voz nordestina, também de força, não se incomoda com a expressão. “Acho forte, acho bonita, mulher macho, no sentido de mulher forte, mulher destemida, guerreira, mulher que tem autonomia, que pensa por si, que trabalha, que luta, que sobrevive, inclusive, ao machismo”, explicou.
Não só não se preocupa com o uso da expressão, como também gosta de dizer: “sou paraibana, sou mulher macho, sim, senhor, sou guerreira, sou forte, não desisto das coisas facilmente, prefiro enfrentar os obstáculos do que ficar na condição de subserviência ou vitimizada”, disse Elba.
Ela acredita que as mulheres não devem ser vitimizadas. Elba explica que é preciso entender que homens e mulheres têm sexos opostos, mas caminham juntos e precisam um do outro. “Eu sou o exemplo de uma pessoa que sem feminismo, sem empoderamentos, venceu, com feminilidade, vontade, com essa força da mulher paraibana, com essa energia que vem do chão, do sol também, a gente saiu e venceu. Isso é maravilhoso”, frisou.
Renata Arruda, pessoense, paraibana, compositora e poetisa já aos 19 anos, também vai pelo mesmo entendimento de Elba Ramalho. “A mulher paraibana é uma mulher feminina, guerreira, corajosa, que não foge à luta, que tem seus filhos e cria seus filhos. Desde criança eu defendo as cores da Paraíba. Nunca me incomodei, sempre dancei a música e levei com bom humor. E é isso aí, Paraíba é mulher feminina, mulher muito forte, sim, senhor”, destacou Renata Arruda.
Lugar de gente forte
É pensando exatamente na forma como a letra foi escrita que Lucy carrega nos vários anos de carreira a música que representa, segundo ela, a força da Paraíba. Cresceu ouvindo os versos, cantou e continuando cantando até hoje a canção que para ela retrata a “força de um estado tão pequeno, tão aguerrido e que se destacou de forma brilhante no cenário político-nacional”.
Ela explica que sempre cantou a música pensando na força e na garra da mulher paraibana, mas com o entendimento de que as letras cantadas por Luiz Gonzaga traziam a representação de uma Paraíba importante para a política do país.
“As mulheres todas desse estado sempre me inspiraram, principalmente as mulheres da minha família. Então salve esse estado feminino, gracioso e de uma força descomunal. Viva todas as mulheres paraibanas, viva todas as mulheres do nosso país, parabéns pela força, pela luta diária, pela conquista dos nossos direitos tão merecidos, pela igualdade dos gêneros”, declarou.
Lucy ainda disse que a luta das mulheres, além do empoderamento e da igualdade, é pela capacidade de transformar coisas pequenas e simples em grandiosas. Assim foi com a Paraíba, assim luta-se para ser com as mulheres.
Maria Kamila Justino, vocalista da banda Os Gonzagas, única mulher do grupo, faz parte do gênero da música Paraíba que tanto fez sucesso e, assim como Lucy, também começou nos ritmos do forró. Para entender o que a música representa, ela vai ao passado. “É preciso voltar ao contexto de 1950 e compreender a situação da seca, por exemplo. E se o país é culturalmente machista ainda nos dias atuais, o que dirá em 1950, não é?”, disse.
A voz nordestina de Kamila que deixa no forró d’Os Gonzagas uma nota feminina tem plena consciência do objetivo da canção: “engrandecer a mulher comparando à figura do homem, levando ainda em consideração um enredo onde o homem vai embora, fugindo da seca, e a mulher fica”. No entanto, não deixa de lado a intenção dos autores. “É uma exaltação da figura feminina paraibana, como sendo um lugar de mulheres fortes, a palavra macho nesse sentido, refere-se a forte nesse, como se usa a expressão ‘cabra macho’”.
A cultura está em constante mutação. A história está escrita para que a gente não esqueça de onde viemos. “A história está aí para embasar e refletir sobre o que queremos e usar ou não uma expressão da cultura popular de maneira livre, compreendendo suas implicações em cada época da história. Aqui, para mim, é um lugar de gente forte, e só”, disse Kamila, forte, nordestina, paraibana.