Sob suas agulhas, a tatuadora Fernanda Souza, 26, já teve, em sua maioria, peles “em branco”, sem marcas anteriores e prontas para receber os traços de uma ou mais tatuagens. A partir deste mês de março, ela buscou um novo propósito para seu ofício: ressignificar, através da arte, os vestígios deixados pela violência em corpos femininos. De forma gratuita, ela busca mulheres dispostas a cobrir cicatrizes provocadas por agressores para minimizar, no corpo, as marcas deixadas na memória.
A ideia surgiu despretensiosa, mas embasada por uma experiência infeliz vivida aos 18 anos. “Fui abusada sexualmente e não tive coragem de denunciar, de procurar ajuda. Não é algo que dá para esquecer. Você não supera, fica com a lembrança adormecida, mas hoje em dia consigo falar sobre isso, então quis ajudar outras mulheres que passaram por uma situação semelhante à que eu vivi”, conta.
Motivada pelo Dia da Mulher e por casos recentes de violência contra a mulher em Pernambuco, como os feminicídios da fisioterapeuta Mirella Sena, morta pelo vizinho no dia 5 de abril de 2017, e Remís Carla da Costa, morta pelo namorado em dezembro do mesmo ano, a tatuadora sentiu que poderia fazer algo para mudar a vida de quem conseguiu sobreviver às agressões.
“Sei que algumas pessoas podem achar que estou apelando, desejando ser vista, mas essa ação significa que estou fazendo a minha parte para tentar ajudar outras mulheres. É a parte que me cabe”, argumenta.
No início, o medo atuou como um freio para divulgar a iniciativa. “Eu não sabia se conseguiria conversar com mulheres que tivessem passado por algo pior do que eu passei. Tive medo de chorar, de não conseguir”, relata Fernanda. O receio, no entanto, foi atenuado por amigos e pelo namorado, que incentivou a ação. “Ouvi dele que não estou sozinha e isso foi muito reconfortante”, conta, aliviada pelo apoio.
O ‘enjoo’ das tatuagens, relatado e temido por alguns dos que decidem ‘riscar’ a pele, também foi uma ponderação de Fernanda antes de dar início à busca por mulheres vítimas de violência. “E se o desenho lembrá-las automaticamente que existe para esconder uma cicatriz?” foi uma dúvida que persistiu por algum tempo antes de a tatuadora se mostrar disponível para tentar minimizar as lembranças de quem passou por um trauma físico. Depois de alguns momentos de reflexão, a resposta veio certeira.
“Penso que seria muito mais satisfatório ter uma tatuagem ao invés da marca. As pessoas podem perguntar o que aquele desenho significa e você pode responder sem constrangimento, diferente de quando perguntam como você conseguiu a cicatriz”
Ao longo de quase um mês de disponibilidade, algumas das mulheres que procuraram Fernanda relataram abusos dos mais diferentes tipos. Do assalto ao ônibus que deixou uma marca causada por uma faca até abusos físicos e sexuais que ficaram registrados não só na mente, mas também no corpo. Os relatos foram fortes e motivaram a tatuadora a estender a iniciativa até o mês de abril.
Enquanto ouve os relatos das mulheres que a procuraram, Fernanda escolhe, junto a cada uma, o melhor desenho depois de um diálogo considerado necessário. “Quero que elas sintam que podem confiar em mim para desenhar e para conversarem sobre o que aconteceu. Podem ser 30 minutos ou três horas, mas acho que a conversa é uma das formas de se sentir aliviada sobre o que quer que tenha acontecido”, garante, disposta a ajudar quem já esteve em sua pele e sentiu o peso de ser vítima.
Fonte: G1 nordeste